O Natal que não cabe na nossa mesa

Um Natal, dois mundos convivendo no mesmo país. De um lado, o consumo vendido como amor. Do outro, a favela fazendo milagre pra não deixar criança chorar. Não é sobre presente. É sobre desigualdade.

BRASILCRONICAHISTORIA

FAVELADO PENSANTE

12/23/20253 min read

O Natal que não cabe na nossa mesa

O Natal que vendem pra gente não nasceu em Belém, nem desceu do céu como um anjo cantando. Ele veio pintado de vermelho, barba postiça, cheiro de shopping e trilha sonora repetida. Um Papai Noel que fala de amor, mas cobra no cartão. Parcelado, com juros.

Antes de virar vitrine, o Natal era festa pagã, ciclo da terra, celebração do sol, da colheita, da sobrevivência. Hoje virou campeonato de consumo, a Coca cola conseguiu mudar a cor do papai noel, imagina quanto isso é símbolo do capitalismo. Quem não compra, perde. Quem não viaja, fracassou. Quem fica em casa parece que falhou na vida.

Na quebrada, o Natal chega pesado. Não é luz piscando, é conta piscando na mente. O décimo terceiro, que era pra aliviar o aluguel atrasado, o gás no fim do mês, o mercado do mês, vira missão impossível: transformar salário suado em sorriso infantil. Porque criança não entende sistema, entende comparação. E a comparação machuca.

Se tem quatro filhos, já era. A matemática não fecha. Fecha o peito, fecha a garganta. O pai vira malabarista, a mãe vira mágica. Não pra ostentar, mas pra evitar o choro que corta mais que faca cega. Do outro lado da rua tem presente caro. Aqui, tem esforço caro.

E nem vamos fingir surpresa com os preços. Peru superfaturado, panetone gourmet, rabanada que virou artigo de luxo. Comer no Natal virou privilégio. A ceia, que era símbolo de partilha, hoje virou exclusão com guardanapo bonito.

Enquanto isso, os oportunistas brotam. Igual formiga no açúcar. Político que some o ano inteiro aparece com sacolinha vagabunda, brinquedo que quebra antes do Ano Novo, sorriso ensaiado e foto pra rede social. Aqui na minha cidade, vereador nem sabe o que faz. São funcionários do prefeito com título bonito. Não representam ninguém, só usam o povo como cenário.

Na favela, a desigualdade não é teoria. É prática diária. É a criança que ganha bola de plástico enquanto outra ganha PlayStation 5. E o adulto que finge maturidade, mas sente aquela fisgada na garganta, quando olha no feed do Instagram várias pessoas, amigos das antigas, inimigos também, viajando, comprando carro novo, casa decorada, casa nova. Se a gente sente, imagina quem tá crescendo agora, aprendendo cedo demais que existe um mundo que não foi feito pra ela.

E aí vem a pergunta que dói: como explicar pra uma criança que o problema não é ela? Que não é falta de merecimento, nem de esforço da família. Que é um sistema inteiro desenhado pra humilhar quem nasce longe do dinheiro.

Talvez o caminho seja arrancar o Natal das vitrines e trazer de volta pra conversa. Explicar com carinho que valor não se mede em preço. Que brinquedo não define amor. Que dignidade não cabe numa sacola de shopping. Ensinar que solidariedade é mais real que propaganda. Que a favela tem potência, história, afeto e futuro, mesmo quando tentam nos convencer do contrário.

O verdadeiro Natal, se existir, não mora no consumo. Mora na partilha, na consciência, na denúncia. Mora quando a gente olha pro sistema e diz: não é normal criança se sentir menor por ser pobre. Não é normal amor ter etiqueta de preço.

Esse Natal elitista não nos representa. A favela não fracassou. O que fracassou foi um modelo de mundo que transforma esperança em mercadoria.

E isso, sim, precisa ser dito em voz alta.